10 de setembro de 2011

A moça da tarja preta

Era tarde. A noite havia pousado na janela daquela moça. O relógio apontava a hora em que o jantar lhe aguardava, não ela a ele. Duas fatias de queijo branco. Duas torradas. Uma xícara de café com leite.

E um copo d’água.

Buscava aquela cápsula como quem busca uma barra de chocolate na geladeira, em plena madrugada.

Na cápsula, prazer e leveza. Esquecimento.

Constance tinha anseios e angústias a esquecer. Tremores a conter, dores a cessar. Mais que isso, tinha noites a dormir e manhãs pra acordar.

E as cápsulas lhe traziam tanto naquela caixa de tarja preta...

Tomava uma por noite. E em vinte minutos, a ação, a sedação. As substâncias mágicas lhe percorrendo os caminhos secretos, lhe dilatando as pupilas, lhe acalmando a alma agitada, o corpo excitado pelas horas que o dia trouxera.

Às vezes, em segredo, desejava ingerir mais de uma. Mais de duas, talvez. Não na intenção de fechar os seus olhos pra sempre, mas pra prolongar a distância que a separava das suas dores.

Ela sentia-se nua, livre, ausente. E lhe era tão bom sair um pouco de si. De dentro de si, onde tantas vezes não desejava estar.

Sim, Constance sentia-se invencível e covarde. As cápsulas lhe davam uma segurança que não era sua. E que só a sentia ao ingeri-las. Covarde por já desejar mais e mais caixas além daquelas que já estavam guardadas no armário, à espera dela.

Nutria apreço por aquelas caixas. Relacionava-se com elas intimamente. Tocava-lhes como quem toca seu próprio órgão sexual. Com leveza, exatidão e desejo.

Ingeria não só as cápsulas, mas a paz interior momentânea que elas traziam em sua composição. E Constance sentia que isso por si lhe bastava pra vencer a si mesma e suas crises de racionalidade. Quando olhava pra si e se percebia tão entregue àquilo que menos queria pros seus momentos. Não chorava. Não gritava nem gemia timidamente, como fazem os fracos.

Simplesmente ingeria aquele alívio comprado sob olhares abismados. Sim, há quem se impressione ao vender algo assim para uma moça tão jovem, bonita, elegante. Uma moça que mal devia saber a dor que a ausência da paz provoca. Uma moça que só deveria ter motivos pra sorrir, afinal, era tão jovem e de sorriso tão franco. Doce ilusão...

Aquela moça, aquela ali exatamente, mal cabia naquelas caixas tamanha era a insignificância que sentia e para a qual buscava alívio...


Lai Paiva

7 comentários:

  1. Muito bom Lai.

    Todos tem alguma tarja preta, mesmo que não seja da farmácia.

    Gostei muito, parabéns!

    ResponderExcluir
  2. As tarjas pretas tem sua função na vida da gente.São apenas uma parada pra descanso,pra q possamos nos tornar mais fortes pra lidar com nossas limitações.Não "resolvem" nada sozinhas,mas nos dão um tempo para reestruturação. :)
    Adorei o conto.Bjs pra "Constance"!

    ResponderExcluir
  3. Mônica, querida, sempre sensata. Obrigada pelas visitas. Uma honra. Beijo

    ResponderExcluir
  4. Maravilhoso!! Adorei!!! As vezes a tarja preta se faz necessária, como a vermelha também. A mente também adoece!

    ResponderExcluir
  5. Seus contos são sempre incriveis Lai, e esse tá fantástico! Tarja preta num dia pra no outro levantar a cabeça.......até porque a delícia da vida tá no doce do vinho e no azedo do vinagre....beijos!!! Renata Lima.

    ResponderExcluir
  6. Rezinha amore, sempre tão bom te ter por aqui. Beijos mil e obrigada.

    ResponderExcluir