Havia uma garota ali, naquele
apartamento, bem em frente ao meu. Do outro lado da rua. Uma garota jovem, de
cabelos curtos, castanhos como devem ser os seus olhos, caídos sob os ombros,
com mechas a quase cobrir-lhe o rosto, alta e magra, devia ter entre 20 e 25
anos. Uma garota que sempre podia ser vista na companhia dela mesma. Por alguma
ironia qualquer, solitária naquele bairro especialmente barulhento. De muitas
pessoas e veículos transitando e emanando sons. Naquele apartamento igualmente
repleto de sons.
Eu a via grande parte do tempo,
ou quase todo ele, em seu quarto. Algo com poucos metros quadrados, com uma
cama de solteiro, um espelho grande, um criado mudo com alguns livros, um par
de óculos e, às vezes um copo de água, outras, uma taça de vinho, um guarda
roupas, um móvel com TV, DVD, um ventilador de teto, cortinas que nunca se
fechavam e almofadas, muitas almofadas espalhadas pela cama e chão.
Não havia muita cor em seu
quarto. Predominava um cinza nem claro nem escuro. Da cor do céu na iminência
de um temporal. Era como se ela estivesse presa numa enorme caixa cinza.
Nos outros cômodos do
apartamento, os quais não me chamavam muita atenção, sempre se podia ver uma,
duas ou mais pessoas, de forma que não saberia precisar quantas pessoas
exatamente dividiam aquele lugar com a garota.
Mas, de fato, ela não estava só,
embora deva sentir-se única em meio aos objetos e móveis daquele lugar que
provavelmente chamavam de seu. Na verdade, ainda que mais de uma voz ressoasse
ali, o único som que me era audível era o de sua solidão, entretanto, para
aquela garota deveria ser o som de seu pensamento lhe dizendo bom dia, boa
tarde, boa noite, durma bem, cuide-se bem...
Sim, era como se, em alguns
momentos, fosse possível ouvir o silêncio que lhe acompanhava, o silencio que
acompanha os momentos solitários. O silêncio que nem mesmo o seu isolamento
restringe.
Sim, ela era solitária. Não se
via amigos ou algo que se aproximasse de um namorado entrando ou saindo dalí. Ela
mesma arrumava sua cama, seu quarto. Mal se podia ouvir sua voz. A impressão
que dava era a de que ela esquecia que podia falar, que sabia falar. Algumas
vezes dava pra perceber certo ar de tranqüilidade em seu rosto por estar só.
Noutras, percebia-se certa tristeza, certo desconsolo. Era costumeiro fazer as
refeições em seu quarto, em frente à TV. Café da manhã, almoço, jantar, lanche.
A TV sempre estava ligada, mesmo que ela sequer olhasse para aquela tela
luminosa, para o que estava sendo transmitido ali. O seu mundo parecia resumido
ao que eu observava do outro lado. Aquelas paredes a separavam de mim, do
mundo, da vida, dela mesma.
Não sei se ela me via a
observá-la. Não sei se ela me enxergava ao olhar pra mim, se é que olhava.
Talvez ela não fizesse ideia de que estava sendo vista ou talvez ela se
sentisse bem na companhia do meu olhar ao longe. Talvez eu nunca saiba ao certo
se eu era só a observadora, ou igualmente a observada.
Ela era uma garota bonita, jovem,
interessante. Dessas que, provavelmente, sempre há alguém a lhe dizer isso,
mesmo que ainda assim não se deixasse convencer. Não acho que era o caso de
auto estima baixa, mas de baixa convicção acerca do interesse alheio por si.
Seria possível que alguma garota não quisesse ser vista, elogiada e bem quista?
Talvez ela sentisse falta de
alguém que lhe falasse, lhe ouvisse, cantasse pra ela, a fizesse sorrir, a
fizesse dormir. Talvez não. Observá-la simplesmente não me dava todas as
respostas que fazia a seu respeito. Acho que ela dividia-se entre o querer
estar só e o estar só.
Não me recordo uma única vez em
que a vi falar ao telefone celular, mas a vi várias vezes a manuseá-lo apenas
entre as mãos, a tocar suas teclas com os dedos, mas sem levá-lo ao ouvido. O
seu telefone celular não tocava... Eu me perguntava como alguém podia viver em
tão completo isolamento.
Certa vez a vi chegar com uma
sacola e de dentro tirar um vestido lindo. De cores e corte lindos. Um lindo
vestido estampado. Ela o tirou da sacola, vestiu e se pôs em frente ao espelho.
Olhou-se de frente, de lado, de costas. Esboçou ar de admiração e, até, um meio
sorriso. Acho que gostou do que viu.
Pensei então que, em breve, ela
iria pôr o vestido, um belo par de sandálias e sair na companhia de uma ou mais
pessoas para se divertir um pouco, desfrutar da noite fora daquelas quatro
paredes, mas passaram-se vários dias e... O vestido nunca saiu dalí. Ela nunca
o usou. E não acho que foi por opção, pois ela parecia bem satisfeita com sua
aquisição. E não acho que ela o comprou pra guardar.
Pude vê-la sorrir para si ou de
si. E era bonito o som do seu sorriso. E raro. Nem alto, nem baixo. Quase
musical, como as canções que se ouvia vez ou outra sair pelas frestas da porta
e janela. E sua solidão era muito
aparente e sonora. Algumas vezes não era triste sabê-la ali sozinha, pois
parecia tão integrada à companhia de si mesma. Eu me percebi, de repente,
admirando o fato de alguém estar só, independente de ser por opção ou não.
Às vezes tinha a impressão de que
todos os seus sentimentos deveriam caber dentro daquelas quatro paredes, ou
então ela os estava protegendo, guardando-os ali. De repente ela poderia ter
receio em vivê-los lá fora.
Certa noite, uma bela noite de
lua cheia, eu a vi debruçar-se na janela de seu quarto e senti medo de sua
tamanha entrega àquela admiração. Ela contemplava a lua com o olhar tão fixo,
com um olhar tão profundo. Com um encantamento tão apreciável. Parecia estar se
relacionando com aquele momento como se fosse o último. Receei que a lua a
levasse pra si, como se isso fosse possível...
A sensação que tinha vez ou outra
era a de que ela poderia gostar dos atrativos que se podiam encontrar lá fora,
mas a verdade é que quase nunca ela saía à procura destes. Acho que às vezes
lhe faltava um convite, outras, ânimo. E, para uma garota assim, ânimo não é
algo que se possa encontrar nas gavetas, no guarda roupas, em lojas ou num
piscar de olhos. Talvez numa boa garrafa de vinho tinto, o seu preferido, como
pude perceber pelos vestígios numa taça que repousava ao lado de sua cama, mas
acho que preferia não correr o risco de perder a sobriedade a sentir-se
estimulada dessa maneira. Ou eu estava fazendo uma leitura errada a seu
respeito.
Música parecia ser algo que lhe
preenchia. Ouvir suas canções preferidas lhe acalmava e confortava.
Deixavam-lhe alegre, de fato. Sua expressão facial era bem aparente. Mesmo
aquelas canções em que o sentimentalismo era exacerbado e a faziam sucumbir às
lágrimas de emoção. E pude ver que algumas canções davam a exata sensação de
que eram os seus sentimentos cantados, descobertos, explicitados. Pude perceber
alguma identificação. Seus segredos cantados... E ela adorava isso. E se
entregava a estes momentos... Sem se dar conta de nada ao seu redor.
A solidão muitas vezes tem o
mesmo efeito inebriante de uma boa dose de álcool...
A música devia ter o poder de
embalar seus pensamentos, suas fantasias. E imagino que ela devesse ter algumas
fantasias. Como devem ter a maioria das pessoas solitárias.
Podia imaginá-la vivendo diversas
situações quando a olhava aqui do outro lado da rua. Através da sua janela. Mas
essas situações fugiam ao seu alcance de modo que ela só cabia naquele espaço
reduzido que eu via atrás da sua janela. E que se tornara o meu lugar. E que
acolhia os meus momentos. Estaria eu a compartilhar da mesma solidão?
Percebi que muitas perguntas se
formam quando a gente está sozinha...
Passar mais tempo só que
acompanhada parecia causar desconforto, inquietação. Em certos momentos ela
andava de um lado a outro em seu quarto, chegava à janela, olhava de um lado a
outro da rua, parecia contar as pessoas e objetos que via, parecia pedir
desesperadamente que o tempo passasse logo. Pude vê-la enxugar os olhos. Ela
chorava sem emitir sons. Deveria ser um choro de desespero, mas era um choro
tão contido. E só seu... Ou talvez ela
chorava pra sentir que estava viva.
Ler e escrever também lhe enchiam
os olhos, pude notar. A solidão que se prendera naquele lugar criava asas através
das suas palavras e voava alto e velozmente, mas sempre por ali, sempre por
perto. As palavras saiam de si com a mesma velocidade e tomavam formas
expressivas. Às vezes, ela se assustava com seu próprio sentir, pois a vi
admirar-se diversas vezes ao ler seus escritos. Como se não reconhecesse a si
mesma quando traduzida ali naquelas linhas.
Eu a via ler e escrever na mesma
proporção. Dias e noites. Era curioso. Daria tudo para ler suas palavras. Suas
palavras úmidas... De vinho e lágrima.
Palavras escritas sem destino nem
destinatário. Apenas angústias, devaneios, desejos, fantasias. Quando não se
tem companhia real, palpável, pode-se criar qualquer que seja, qualquer que se
queira. E desfrutá-la sem receio de não mais recuperar a lucidez.
Sim, claro, aquela garota devia
ter seus desejos. Algumas vezes tinha a impressão de que ela deseja apenas uma
xícara de capuccino com canela e chocolate. E contentaria-se em bebê-la sozinha,
como a vi tantas vezes fazer. Outras vezes ela parecia desejar a companhia de
alguém que pudesse olhar seus olhares, ouvir suas palavras, dividir sensações e
opiniões sobre um filme qualquer, uma notícia recente, ou o tempo lá fora. Era
como se eu pudesse ver isto em seus olhos silenciosos. Era como se ela pedisse
como numa prece, que alguém a fizesse companhia, simplesmente. Compartilhasse
de suas horas, que pareciam anos.
Lá fora, o movimento na rua, as
luzes, as pessoas, os carros. Aquilo conotava vida. Tempo. E, de certa forma, a
fazia sentir que havia sim um movimento lá fora, que havia uma continuidade,
ainda que ela sentisse que estava em ritmo diferente. Ou fora de ritmo.
E que ritmo teriam as suas horas
se pudesse parar de contá-las?
Uma noite eu adormeci debruçada
na minha janela, na minha caixa branca, pois que são brancas as paredes onde
guardo meus momentos de observadora, a olhar a tal garota à minha frente, no
seu recolhimento.
Despertei algum tempo depois,
assustada e meio perdida. Os braços dormentes e o coração acelerado. Levei
alguns instantes para voltar a si. Olhei em volta de mim, das minhas quatro
paredes, rapidamente, e voltei meu olhar à janela. Não vi a garota. Estranhei.
Caminhei por entre os outros cômodos do meu apartamento, olhando pelas outras
janelas, na esperança de tornar a vê-la. Nem um sinal. Teria saído? Ou estaria
em algum onde meu olhar não alcançasse? Teria ela se dado conta de que sempre
fora observada e agora estivesse a se esquivar? Teria se rebelado?
De repente me vi angustiada por
não ter essas respostas...
De repente me vi em desespero por
perdê-la de vista. Como se eu me sentisse responsável por guardá-la sob meu olhar
e a tivesse deixado perder-se enquanto adormeci.
Não sabia o que fazer. Não podia
simplesmente atravessar a rua, pegar o elevador, subir ao sétimo andar, tocar
sua campanhia pra saber o que havia acontecido.
Era segredo meu tê-la observado
todo este tempo... Um segredo só meu.
Então parei. Voltei a me debruçar
na janela, olhei pro alto, a princípio, como se fosse encontrar algum sinal.
Nada. E essa inquietação era de um silêncio ensurdecedor.
Voltei meu olhar para baixo. Lá
abaixo de todos os outros andares. Voltei meu olhar para o chão. Aquela calçada
cinza, bem iluminada, seca, livre de transeuntes. Era quase duas horas da
madrugada. E lá estava ela. A tal garota solitária. A garota que talvez eu tivesse
sido, ou que talvez eu fosse sem que nem soubesse que era. Vestida com o mesmo
vestido lindo e estampado que a vi provar. Com pequenos pés descalços. Desacordada.
Como se estivesse em sono profundo. Como eu nunca a havia visto antes. Como se
tivesse adormecido e posta ali, com cuidado, para que não despertasse. Os
cabelos desalinhados e cobrindo parte do rosto, mas pude ter certeza de que era
ela. E pude, mesmo ao longe, ter certeza de que não estava dormindo.
Era como observar uma luz que
alta brilhava e de repente se apagou.
Fiquei atônita. Senti-me congelada
como ela. Presa naquele instante. Sem mãos, pernas e voz. A solidão
materializada naquela garota, havia se quebrado com ela. Frágil solidão. Triste
solidão.
E eu nem sabia o seu nome.
Caminhei até a cozinha com passos
de desilusão. Abri a geladeira como quem suspende uma camada espessa de
concreto. Rapidamente meus olhos encontraram uma meia garrafa de vinho tinto.
Peguei-a e sentei-me à mesa. Derramei o líquido numa taça e bebi. Bebi como se
bebesse diluído aquele momento de pesar. E me senti inebriada pela comoção.
Por onde andarão os meus olhares
na ausência daquela garota?
Perdê-la de vista talvez fosse
pior que perder a visão. Perdê-la talvez fosse perder-me.
Bebi todo o líquido vermelho
sangue daquela garrafa. Bebi em silêncio profundo. Que é de silêncio que se
fazem os momentos de despedida. E eu estava me despedindo da companhia da
solidão que vi vestida com um lindo vestido estampado.
Ela era linda e viva.
O dia estava por vir. Outra luz
surgia ao alto. Não mais aquela que vi em seus olhos. Logo muitas pessoas se
aproximariam e abririam olhares e bocas ao vê-la. Cobririam-lhe com um longo
lençol branco, escondendo as cores que cobriam o seu silêncio. E dalí em diante
nunca mais eu a veria de novo. E aquela caixa cinza teria as paredes demolidas
pelo luto do meu olhar.
De súbito, senti que ia sucumbir
às lágrimas e me sentei na cama a chorar a morte da solidão.
Sozinha...
Lai Paiva
Excelente narrativa poetica.
ResponderExcluirPosso ousar pedir um conto? dessa vez com uma caixa cheia de felicidades! :)
beijão
Bk
Nossa Lai!!! De arrepiar....lindo! Adorei!
ResponderExcluirComo sempre vc superendo!
Beijos!!!
Renata Lima...
Estonteante. Que talento menina em tecer essas histórias assim, com maestria e instigância.
ResponderExcluirMeu carinho,
Sam.
Bequinha, Rezinha e Sam, obrigada minhas queridas, pela leitura e carinho de sempre! Beijo carinhoso em cada uma!
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